Leia a parte 1 do capítulo I AQUI e a parte 2 do capítulo I, AQUI. O post anterior, Interlúdio você rever clicando AQUI. O capitulo II é só clicar AQUI. O capitulo 3 é AQUI. E o 4º AQUI.

Antes de partir para o Neo-realismo italiano, julguei importante um segundo adendo, exclusivamente sobre um filme que mudou tudo.

INTERLÚDIO II

Um divisor de águas

Não poderíamos continuar viajando pela história da sétima sem nos determos um pouco em Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles, considerado pela maioria dos críticos e eleições o melhor filme de todos os tempos, independente de questões de gênero. E m Cidadão Kane, Welles - então com apenas 25 anos - utiliza os mais diversos elementos específicos e não-específicos com clara função dramática. Também por isso é um filme tão rico e considerado o melhor filmes de todos os tempos, pois as formas expressivas são múltiplas e os recursos nunca são meros acessórios, adornos para florear gratuitamente a narrativa.

Orson Welles surgiu como um meteoro transformador justamente naquele momento sobre o qual o Capítulo IV fala. Embora não-europeu, teve papel parecido com o de outros cineastas recém-chegados em hollywood, principalmente por ter realizado uma espécie de "filme-resumo", que recapitulou muitas das principais conquistas estéticas feitas até então, lançando mão de tudo de forma inegavalmente criativa e pessoal; lembra muita coisa anterior, mas é diferente de tudo já feito. Que fique claro, não é um filme importante por ser apenas um "catálogo", não se trata de um uso indiscriminado para exibicionismo pernóstico de um jovem promissor. Temos, sim, um jovem promissor com clara consicência artística e cinematográfica, que praticamente atingiu seu auge em sua primeira obra.

Um dos recursos técnico-estéticos mais marcantes e mais citados de Kane é a chamada profundidade de campo, que toma forma quando se capta mais de um plano no mesmo enquadramento. Esta forma de planificar não foi inventada por Welles; embora não fosse comum, já havia sido utilizada, por exemplo, por Jean Renoir em um de seus melhores filmes, A Regra do Jogo (La Règle du Jeu, 1939); podemos vê-la também, brevemente, na cena final do grande clássico (já citado) Os Melhores Anos de Nossas Vidas (The Best Years of ours Lives, 1946), de William Wyler. Contudo, enquanto estes últimos, pode-se dizer, utilizavam a profundidade de campo basicamente para captar em toda a sua amplitude uma cena num espaço fechado relativamente grande, com vários personagens em cena, Welles a utiliza com função muito mais dramática e interferindo de modo mais determinante no ritmo do filme. Ele elimina, por exemplo, a necessidade do tradicional campo e contracampo - a alternância entre planos distintos de dois personagens que, no entanto, estão no mesmo espaço da ação - em cenas com dois personagens interagindo. Temos também a profundidade de campo na cena, ainda na parte inicial do filme, em que o agente do banco conversa com os pais do pequeno Charles Foster Kane, para convecê-los a levar seu filho, que passaria à sua tutela, não mais passando por qualquer dificuldade financeira. Em primeiro plano temos o diálogo e ao fundo vemos pela janela da humilde casa o garoto brincando na neve com seu trenó, todos os planos nítidos. Neste plano Welles nos oferece o ponto de encontro da história, de certa forma cíclica, o início que remete ao fim; o início da aventura quando testemunhamo, simultaneamente, a decisão que serve de gatilho para toda a história, o início da formação do cidadão Kane, e também a representação da infância a ser destruída em seguida, do qual sente falta o protagonista no fim da vida. Embora Orson Welles fosse um artista sofisticado em sua estética como poucos, rebuscado até, era virtuoso o suficiente para narrar com precisão e objetividade, no sentido em que sabia sintetizar várias idéias e informações num único ou em poucos planos.

O filme tem diversas outros artifícios e pode sua construção ser observada em várias dimensões além da planificação. No som, além da trilha sonora do grande Bernard Herrmann (Piscose, Um Corpo que Cai, Intriga Internacional e outros de Hitchcock, Taxi Driver, de Scorsese, entre vários outros), temos o uso do estilo radiofônico - do qual Welles era cria - nos diálogos dos personagens. O volume e as impostações de voz em vários momentos remetem à época áurea do rádio. O uso dos cenários e da fotografia é expressionista. A fotografia tem fortes contrastes e os cenários são deformados, embora não no grau de um típico filme mudo expressionista; são desproporcionais em relação à realidade, ao tamanho dos personagens. Weles rebaixa os tetos de alguns cenários e filma em contre-plongé (de baixo para cima) parcial, mostrando personagens com a impressão de gigantismo - isso mesmo em cenas em que estes passam por crises, o que pode até ser visto como ironia da narrativa.

Quanto à trama, é estruturada como um quebra-cabeças a ser montado pelo espectador no decorrer da narrativa. Temos um filme todo em flashback. Logo após a morte de Charles Foster Kane, um homem de destaque, magnata das comunicações, com investidas na política, forte influência na sociedade e vida permeada de escândalos e relações pessoais conturbadas. Um jornalista, então, é encarregado de contar sua história, de revelar ao público o "verdadeiro" Cidadão Kane. A verdade, porém, é relativa, na vida como neste filme e depende do ponto de vista de quem a conta. Temos então as diferentes versões de pessoas que com ele conviveram. Os relatos tratam de momentos específicos da vida de Kane, que muitas vezes coincidem cronologicamente, mas sem seguir uma linearidade, até por não se tratar de um relato contínuo e único.

Em suma, é um filme que quebra com a tradicional linearidade hollywoodiana e que também faz um balanço das conquistas estéticas do cinema de até então, tudo com função dramática. Filme virtuoso e rico formalmente, que mostrou que o cinema praticamente não tinha limites, que podia, sim, contar bem uma história, mas indo muito além; mostrou que uma obra cinematográfica pode expressar seus sentidos de diversas formas. Pode-se dizer, é um filme cujo tema é também a própria linguagem cinematográfica.

Este foi apenas um resumo, na internet e em livros sobre cinema, pode-se encontrar muito material sobre Cidadão Kane assim como sobre Orson Welles.

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