Leia a parte 1 do capítulo I AQUI e a parte 2 do capítulo I, AQUI. O post anterior, Interlúdio você rever clicando AQUI. O capitulo II é só clicar AQUI. O capitulo 3 é AQUI. E o 4º AQUI. E também o interlúdio 2 AQUI.
Capítulo V
É possível captar a realidade objetivamente?
Guardadas as devidas peculiaridades, assim como a Alemanha deu origem a um novo movimento estético cinematográfico após sair arrasada da Primeira Guerra Mundial, A Itália buscou uma nova forma de cinema que se adequasse ao estado de espírito e ao status socioeconômico do povo italiano após o fim da Segunda Guerra Mundial.
Empobrecida, desenganada e com um desemprego recorde. Essa é a Itália mostrada nos clássicos do chamado Neo-realismo Italiano. Para melhor representar este estado de coisas, os cineastas deste novo movimento estético optaram, via de regra, por uma narrativa enxuta, crua, a mais direta possível. Embora o cinema, como qualquer outra forma de arte, seja uma representação estilizada da realidade – de acordo com preceitos estéticos, possibilidades técnicas e idiossincrasias do autor –, os realizadores neo-realistas buscavam uma captação direta da realidade, sem escalas, por assim dizer. Disso, entenda-se sem floreios, sem dramatização, com pouca trilha sonora e muitas vezes com atores não-profissionais.
O grande problema encontrado na visão de mundo que guia o Neo-realismo reside justamente na impossibilidade de, em qualquer forma de se contar um história ou de se representar algum aspecto da realidade, se alcançar uma exibição "pura e direta" do mundo e dos acontecimentos. Afinal, não existe um traço de realidade ou um acontecimento por si só, essencial, tampouco uma única versão verdadeira, a despeito de interpretações ou romantizações da realidade – o que o Neo-realismo buscava atingir em grande medida. O que há de fato são sempre versões, narrações de um determinado ocorrido. De que outra maneira conhecemos as coisas e os fatos, se não por narrações? Mesmo quando testemunhamos um fato, seja auditiva ou ocularmente, não se trata aí de conhecer o fato por si só, já que influem o ângulo de visão, por exemplo, sem contar a forma como interpretamos o que testemunhamos. A propósito dessa discussão a respeito do que é a verdade, temos ótimos exemplos cinematográficos. O próprio Cidadão Kane – já abordado – discute a relatividade do que julgamos verdade ao apresentar não uma versão sobre um personagem e sua história, mas pontos de vista diversos, o de determinados personagens que com o personagem conviveram. Um exemplo mais explícito ainda a discutir essa questão é Rashomon (1950), de Akira Kurosawa, no qual os personagens descrevem, cada qual de sua posição o mesmo incidente.
A despeito de tais digressões, o que ocorre é que o Neo-realismo foi uma importante contribuição estética ao cinema. Sim, pois nos mostrou como fazer cinema de um modo mais "cru", em contato mais direto com o cotidiano – principalmente o dos humildes –, de um modo menos dramático. Sim, é impossível para o cinema, principalmente em sua forma mais tradicional, a narrativa, eliminar totalmente a dramatização. Apesar de cinema moderno e "anti-dramático", o Neo-realismo sempre contava histórias, e quando se conta história, quando se narra, a desdramatização é inatingível em sua totalidade. De todo modo, embora tenha durado pouco tempo – no máximo uma década – o Neo-realismo marcou indelevelmente o cinema mundial. Até hoje – o cinema iraniano é um exemplo – podemos ver narrativas despojadas, com ares de amadorismo, sem "floreios" dramáticos para encantar o espectador. Os bons filmes dessa escola prendem sim a atenção do espectador, mas de outra forma, a partir do retrato de um mundo até então pouco abordado no cinema, e de um modo que reforça sua atmosfera de realidade, de "verdade". Em suma, esta escola tirou o cinema da obrigação de dramatizar, mistificar ou fantasiar a realidade.
Claro que mesmo dentro de um movimento artístico há autores e autores, cada um com seu estilo. Temos Roberto Rosselini, provavelmente o mais radical na aplicação do conceito mestre do Neo-realismo, e, ao mesmo tempo, Vittorio De Sica, que não abria mão de uma dramatização mais explícita, assim como de uma boa dose de sentimentalismo – o que, inegável, dava mais apelo popular a seus filmes. Não obstante a resistência deste último em assumir totalmente o Neo-realismo, é o autor de um dos filmes mais conhecidos do movimento, Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette, 1948), que conta a história de um operário (temos aí a opção por atores não profissionais), que, frente ao desemprego crônico na Itália pós-guerra, vê a chance de mudar de vida num emprego de colador de cartazes, para o qual era necessária uma bicicleta, não fornecida pelo empregador. Sua inestimável ferramenta de trabalho é roubada no primeiro dia de trabalho – o gatilho de todo o conflito da trama. A despeito de toda a forma despojada do filme, típica do Neo-realismo, De Sica não abre mão de recursos dramáticas para ter certeza de que o espectador terá simpatia e se compadecerá do protagonista. A propósito do sentimentalismo – sem vulgaridade, é importante ressaltar – de De Sica, podemos vê-lo com muito mais força nos seus filmes posteriores ao Neo-realismo, como no bonito Os Girassóis da Rússia (I Girasoli), de 1970. Quanto a Rosselini, efígie do Neo-realismo, destacam-se Roma, Cidade Aberta (Roma, Città Aperta, 1945), Paisà (1946) e Stromboli (1950) – este último, já com um drama intimista em meio ao realismo. De De Sica ainda vale destacar também o belíssimo – na mesma linha narrativa de Ladrões de Bicicleta – Umberto D (1952).
A Seguir, A Nouvelle Vague e a destruição de todo e qualquer paradigma cinematográfico.
Categoria(s): Cinefilia